Sei que faz muito, muito tempo que não posto, mas mesmo que quisesse, eu não conseguiria... tive pequenos "problemas técnicos"! Para compensar, essa aqui é um pouco maior do que de costume:
Domingo de manhã, céu azul, sol brilhando, nenhuma nuvem que
anunciasse chuva. Dia perfeito para… fazer faxina. Danilo, de bermudão e
camiseta surrada, decidiu criar coragem para abrir a porta do quartinho da
bagunça, que acumulava cacarecos desde que ele se conhecia por gente. Era até
difícil ter uma noção do que estaria ali dentro.
A porta, que pela
graça de Deus abria para fora do cômodo (caso contrário, seria impossível
entrar), era pesada e vedava bem o quarto. Tanto que o cheiro de mofo que o ar
úmido tinha lá dentro era imperceptível do lado de fora. Quantas vezes Danilo
viu a mãe entrar no ‘cemitério das tralhas ’ para guardar brinquedos fora de
uso, procurar livros que ela preservava há anos e sair com a blusa por cima do
nariz, fazendo cara de nojo e reclamando da falta de luz e ventilação… a frase
que vinha depois disso era sempre a mesma: ‘Eugênio, trate de dar um jeito
nisso aqui!’. E apontava para a porta já fechada. Dona Lucinda foi embora deste
mundo sem ter tido o gosto de ver o quartinho arrumado. Seu Eugênio, também
falecido, sempre se negava a empreender uma aventura para fazer a vontade da
esposa.
A tarefa de
acabar com a bagunça ficou para Danilo, que, sendo filho único, herdou a casa
onde passou grande parte da vida. Cada cantinho tinha uma boa memória atrelada
a ele. Mas todas relacionadas com Dona Lucinda. Danilo nunca se deu bem com o
pai, um homem frio, que não conversava com o filho, não o elogiava, nervoso por
natureza e que destratava filho e mulher, mas era todo sorrisos com amigos e
vizinhos. A raiva de Danilo crescia junto com os vexames que Seu Eugênio fazia
a família passar.
Para esquecer
aquilo, Danilo chacoalhou a cabeça, botou um sorriso no rosto e pensou nas
feições bondosas da mãe. ‘Pode ficar tranquila, mamãe. Eu dou um jeito nisso
aqui. ’
O ar pesado e
frio saiu assobiando pela porta enquanto Danilo tateava a parede em busca do
interruptor. Ouviu-se um clique e uma luz amarelada, fraquinha, surgiu no meio
do teto. A desordem era assustadora: duas cômodas, um armário, uma poltrona com
o estofamento saindo por inúmeros buracos, abajures, caixas, caixas, caixas.
Algumas roupas velhas nas gavetas das cômodas e livros que pareciam não acabar
mais nas estantes do armário. Tudo era tão nostálgico que Danilo não resistia a
examinar minuciosamente tudo o que pegava. Lia cada revista em quadrinho,
folheava todos os cadernos da época de escola e aproveitava para xeretar em
alguns cadernos que os pais usaram na faculdade, mas que ele nunca conseguiu
consultar. Um dos primeiros cadernos que tirou da estante foi o do pai. Olhou
por uns poucos instantes, indisposto a abri-lo, mas a curiosidade foi maior do
que o rancor. Começou a percorrer suas páginas, começando pela parte de trás, e
algo chamou sua atenção: uma folha completamente preenchida por uma letra
espaçosa, sem muita personalidade. Danilo reconheceu a caligrafia de Seu
Eugênio e começou a ler.
“ 8 de setembro,
1974
Meu filho,
Ainda não te
conheço e não sei se ao invés de filho, deveria ter escrito ‘filha’. Ainda não
te peguei no colo, olhei bem no fundo de seus olhinhos e te achei a criaturinha
mais linda do mundo. Ainda não acordei no meio da madrugada para te atender,
trocar sua fralda, te dar mamadeira ou simplesmente te apoiar em meu ombro para
você saber que tudo está bem, que seu pai está com você. Ainda não te conheço
pelo nome. Talvez você se chame André, talvez Maria, Rodrigo, Regina, Cíntia,
Danilo… isso, um nome muito bonito esse. Danilo.
Por enquanto sou
apenas um rapaz terminando a faculdade, namorando uma moça linda que espero que
um dia você chame de mamãe. A Lucinda é muito boa moça, parece que será uma
ótima mãe.
Estou escrevendo
esta carta apenas na esperança de um dia poder lê-la para você e rirmos juntos
das minhas bobagens, minha ingenuidade ou quem sabe de felizes coincidências.
Peço perdão antecipadamente por possíveis erros de português!
Eu me pergunto se
sairemos juntos para andar de bicicleta, empinar pipas, se iremos a parques num
domingo ensolarado com céu azul, um domingo igual àqueles que as pessoas
aproveitam para fazer faxina! Será que lerei historinhas para você dormir? Acho
que não… essa tarefa ficará para sua mãe, não leio muito bem. Mas posso brincar
de herói com você, te levantar para fazer você voar ou me passar por um monstro
gigante. Não sei explicar por que, mas tenho quase certeza de que você será um
menino.
Enfim, me
pergunto se farei com você tudo aquilo que meu pai não fez comigo. Velho
ranzinza, ele. Espero não ser como ele foi, ninguém merece um trauma tão grande.
Ele não era muito chegado em conversas, sabe? Sempre que eu sentava do lado
dele no sofá, ele levantava e ia para outro cômodo. Eu quero conversar com
você, ouvir como foi seu dia, te dar conselhos de gente mais velha. Quero que
você saiba o que é esse pequeno prazer da vida. Mas não reclamo muito, tudo tem
lado bom: quando ele morreu, dois anos atrás, foi mais fácil me conformar com a
perda, coisa que não vai acontecer quando minha mãe for fazer companhia para
ele.
Como não posso
prever o futuro, peço perdão novamente, mas desta vez de joelhos. Talvez a
maldita genética me deixe parecido com seu avô e tudo o que escrevi nesta carta
não se concretize. Talvez isso me mate por dentro e todo o carinho que já sinto
por você fique enterrado em um cantinho muito escondido de mim. Talvez nem eu
mesmo perceba no que me transformei.
Ou, a pior de todas as hipóteses, talvez você chegue a sentir por
mim a mesma raiva que eu sentia pelo meu pai.
Mas espero, do
fundo do coração, que isso nunca aconteça. Quero que nossa família seja feliz.
Me despeço por
ora. Até daqui alguns anos.
Papai”